Visita às hortas de Mestre Chico Calhar
Visita às hortas de Mestre Chico Calhar e companheiros
Uma reportagem de Carlos Maria Trindade
Sábado de manhã, Pavia. O dia amanhece sem chuva, coisa que nos últimos tempos não é normal. Uma caravana de carros rola pela estrada que vai para o Vimieiro e vira, logo ali ao fim da primeira recta à esquerda. Anda um pouco pela terra batida e estaciona. É o grupo que constitui o Círculo de Sementes da região de Mora que faz uma visita às hortas de Mestre Chico Calhar e companheiros.
Para isso é preciso atravessar o Ribeiro do Freixo, que nesta altura corre com um caudal forte, saltando de pedra em pedra, evitando o musgo escorregadio. Há quem prefira ir no jipe mas quase todos se atrevem e a coisa corre bem.
António Luís é o cicerone perfeito. Brincou, caçou e pescou por aqui toda a sua infância e conhece a zona como ninguém. Reúne o grupo e explica: “Estas eram as casas dos moleiros, que viviam ao longo da Ribeira, daqui até Cabeção: a parede traseira era uma rocha e a partir daí desenvolvia-se a construção, completamente integrada na paisagem e ninguém vivo se lembra de elas serem habitadas”.
Mestre Chico é rijo apesar dos seus 81 anos, recebe-nos com simpatia e vai buscar as caixas com as sementes. O grupo instala-se à volta do anfitrião e começa a partilha de conhecimento. Um dos elementos filma tudo e o documentário juntar-se-á a muitas outros, que vão fazer prova da importância do conhecimento geracional.
Existe neste momento grande oposição à Lei das Sementes, que uma Comissão Europeia tenta fazer aprovar, sobre a catalogação e registo das sementes.
Ao procurar impor um sistema de registo e certificação obrigatórios, a Comissão vai acabar por limitar o mercado a um número reduzido de variedades comerciais, onde dominarão as grandes agro-indústrias.
Esta Lei pode pôr em risco a segurança alimentar dos povos e a soberania alimentar, uma vez que variedades antigas, raras e de polinização aberta, que hoje são do domínio público, acabariam por ser eliminadas, por restrições burocráticas, do mercado e da alimentação humana.
Recorde-se que a Comissão Europeia, vai acabar por favorecer as multinacionais das sementes, ao obrigar a registar toda e qualquer variedade de sementes, mesmo as utilizadas em hortas familiares, por agricultores tradicionais, e comercializadas em mercados locais, impondo custos e processos administrativos incomportáveis para a pequena produção.
Um Círculo de Sementes é uma ideia muito simples: Consiste em reunir um grupo de amigos ou vizinhos, em que cada um se inscreve para multiplicar e guardar sementes de uma ou mais culturas. Cada elemento escolhe uma espécie, semeia, cuida, colhe, limpa, seca e armazena as sementes. Nos encontros partilhará as suas sementes e a informação que tem sobre a planta que escolheu.
Uma coisa é certa: o conhecimento prático de Mestre Chico e tantos outros por esse país fora que remexem na terra para plantar vida nas hortas vem, de gerações em gerações, do Neolítico, altura em que a raça humana deixou o nomadismo e começou a ser sedentária, descobrindo o uso das sementes e o pastoreio, fundando povoados e aldeias.
O regresso às hortas que se vive um pouco por todo o lado, até nas grandes cidades, é prova de que precisamos do cheiro a terra, por muito que nos encubramos no cimento.
Mestre Chico falou sobre o passado das suas hortas em socalco, ofereceu sementes várias e pés de morangueiro, explicou como planta e colhe a cebola em Quarto Minguante. A arte da terra põe sempre a Lua ao barulho. E eu fui para casa a pensar que talvez os senhores da Comissão nunca tenham pensado nisso.
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